Três
jovens, passeando de carro, avistaram algo grave:
-
Tem uma pessoa coberta no asfalto, deve ser assaltante! – apontou Heitor.
-
Essas coisas são comuns aqui no Rio... – reconheceu Roberto.
-
Também em São Paulo! – retrucou o outro em consolo bobo.
Enfim,
concordaram em alguma coisa os dois primos. Sempre se encontra algo em comum
entre as pessoas...
Diante
da anuidade deste consolo inocente, Xavier se pronunciou, sumariamente:
-
Pode ser, mas não troco nossa violência por aquela maluquice que vocês têm
lá... – disse o doce rapaz, fitando Heitor, que, por sua vez, calou-se.
Mas
alcançando que deveria, também, dizer algo em favor de sua cidade, o outro
carioca alfinetou:
-
Verdade mesmo, Xavier. Por aqui as pessoas se cumprimentam, vão à praia e
percebem o nascer do sol. Lá todo mundo correndo e achando que estão vivendo...
Cidade horrível à beça!
-
São Paulo pode não ser a mulher mais bonita do mundo, mas, sobremaneira, é a
mulher mais charmosa sob a face da Terra... E, meus caros, à medida que se
envelhece, valem-se mais a elegância e a inteligência que a beleza!
-
Pô, meu irmão! O velho poeta boêmio já dizia: “Que me desculpem as feias, mas
beleza é fundamental...”. Não troco o Rio por nenhum lugar deste mundão...
-
É?... Aposto que aquele sujeito que ficou estirado lá atrás, no asfalto, também
não trocaria... – ele sorriu – Agora que o coitado não pode trocar nada mesmo... Pobre diabo!
Heitor
disse isto por escárnio e por certa raiva dos amigos, ou seja, poderia ser
qualquer sentimento, menos compaixão. Antes de seguirem viagem, eles caíram num
silêncio profundo, tristes e, até, reflexivos.
A
lôbrega que havia se instaurado foi quebrada, finalmente, pela seguinte frase
que, além de perfazer toda a oração, continha uma representação antropológica:
- O cara morto lá no asfalto... Deve ser um paraíba! – foi o que constatou Xavier.
Tal
qual um filme célere, que passa pela mente em segundos, Heitor pensou mesmo que
a correlação, entre o determinismo de ser nordestino e a denominação pejorativa
atribuída a ser um “paraíba”, aponta um estigma carioca. “Malditos estigmas!”,
ele resmungou. Embora alguns, mais antigos, tenham por si que a cognação
corresponde aos provenientes do além-Paraíba; ainda assim, seriam pessoas da
mesma estirpe e marcadas apenas por delimitar limites oriundos do
norte do rio Paraíba do Sul.
Bendita
seja a Feira de São Cristóvão!
Marca
de supressão também existente entre os paulistas, pois que denominam de “baianinho”,
“baianão” ou “baianada” todas as mazelas sociais e suas derivativas. Pobre sina
esta dos que têm sua raiz nos que clamam por Padrinho Cícero! Ainda
refletindo sobre este pensamento dos jovens amigos, verifica-se existir espécie
precavida de apartheid sócio-regional de norte a sul do Brasil; ou do sul para
o norte, mas isto não importa muito... Temos mais uma divisão supérflua, talvez
imbecil, neste país. País que teima em não amadurecer... Mas perceba, meu irmão
nordestino, acompanhe, por favor, o meu atilamento. Veja se não concorda comigo
que é comum a classificação teatral numa sociedade de aparências; os próprios
habitantes do nordeste brasileiro alcunham de “são-pauleiros” os seus
sertanejos que vêm à São Paulo trabalhar na lavoura. Os cidadãos do mundo
inteiro têm sinais característicos da inflexibilidade humana, em sua habitual
inclemência que não aceita diversidade cultural, ou na simples cegueira social.
“Paraíbas”, “baianos”, “bolivianos”, “cucarachas”, “sudacas”, “argelinos”,
enfim, ainda que artificiais, são mesmo malditos estigmas!
Destarte, as concentrações urbanas badaladas reverenciam cariocas, paulistas,
mineiros, paranaenses, gaúchos e assim por diante, em detrimento a todo um povo
legítimo, originário de toda uma nação. Onde Cabral aportou, afinal? De onde vem o próprio nome
Brasil? Só isto já bastaria para verificar que se há algum débito entre as regiões
este é do sul/sudeste para com o nordeste. Num povo tão esparso como o nosso, onde até dentro dos
municípios as idéias se confundem, não há mais espaço para a convivência? Assim
como, também, teima-se que as áreas metropolitanas do Rio, São Paulo, Belo
Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Belém inventarão o progresso. Mentira!
Talvez haja mesmo algum progresso, alguma civilização, mas falte a ordem, a consciência
humana; portanto, será tudo dissimulação caso reneguemos nosso berço. Parece-te cômodo que agricultores sejam “jecas”? Estamos é fabricando e
embalando cidadãos flexíveis, de espírito atalhado ao enriquecimento do
extraconhecimento, de igual modo aniquilamos a cultura livre, descartando tudo aquilo que poderia nos tornar brasileiros autênticos e não esta sociedade deslumbrada e estereotipada que somos hoje.
As
plantações hodiernas de cana de açúcar, a moderna indústria, a mineração e a
siderurgia, a agricultura da soja e a diversificação da economia em todas as
áreas (inclusive as longínquas lavouras na roça e a pobreza de lugares como o
Vale do Jequitinhonha, onde não se consegue garimpar a própria vida), não são
representadas pela sua própria cultura, mas sim pelas tais áreas metropolitanas. Para a
legislação ordinária pátria, que também é prevista na Magna Carta, todos os
brasileiros são iguais, sem diferença de raça, crença, classe ou de qualquer
outra natureza social; entretanto, pragmaticamente, os municípios
apresentam-se, paradoxalmente, separados do desenvolvimento, quase
retrógrados; posto a representatividade política que possuem as metrópoles. Em
todo caso, é sabido que as pessoas moram em casas, apartamentos, sítios,
chácaras, chalés, barracas, barracos, embaixo de pontes, enfim, vivem nas
residências, e não envoltas em bandeiras. Portanto, sendo assim, e sem me
estender mais, digamos que a antinomia incontestável do pensamento nacional
está no fato do Estado não se ater apenas em suas únicas duas obrigações: de
promover um meio para realização da cultura; e, como diz Nietzsche, de fazer um
ambiente para nascer o além-do-homem.
Fossemos
mais rigorosos, concluiríamos que jamais houve um autêntico federalismo no
Brasil ou, ainda, que, nós brasileiros, vivemos uma tragédia de composição
federativa. Sem uma cultura autêntica, este país vive de decretar regras e mais
regras, a torto e a direito... Quais
resultados? Responda o senhor mesmo, leitor, ou peça ajuda a minha amiga dona
leitora.
Desculpe
ao cidadão e também a eleitora, porém toda esta minha irritação é quanto à
cisão, tipicamente, brasileira, agindo intempestivamente, como se irmãos
tivessem que se tolerar. Tolerância, intolerância; por que não convivência?
Com
isto escrito em aflição, assustado que fiquei com a onda xenófoba registrada no
Twitter e outras redes sociais da internet, talvez deflagrada pela campanha política
sórdida feita nesta última eleição republicana, percebo que este nosso país é
um paraíso fantástico – filho único e resto de tudo.
Por Ricardo Novais